Corynebacterium diphyteriae

1.    INTRODUÇÃO

A difteria é uma doença infecciosa aguda, imunoprevenível e de notificação compulsória, caracterizada pela presença de uma pseudomembrana localizada principalmente em árvore respiratória, que pode produzir sintomatologia sistêmica pela ação de uma exotoxina. A mais remota descrição sobre sua ocorrência vem de Arataeus, o Capadócio (181-138 a.C.), sob o título Úlceras sobre amídalas. Antes do advento da vacina, reconhecia-se a difteria como a maior causa de morbidade entre as crianças em muitos países industrializados, com letalidade variando de 5% a 10% dos casos.            

Entre outros fatores, a introdução da vacinação em larga escala com o toxóide diftérico, após as décadas de 1940 e 1950, teve grande impacto na sua incidência, chegando-se até à eliminação virtual em alguns desses países. Entretanto, na década de 1990, a ocorrência de uma epidemia de grandes proporções, que atingiu a população dos novos países independentes da extinta União Soviética e outros da Europa Ocidental, colocou a difteria entre as doenças reemergentes, com grandes desafios pela frente. No Brasil, o controle da difteria deu-se, principalmente, na década de 1990, apesar do Programa Nacional de Imunização (PNI) ter sido implantado no início dos anos 1970.



2. ASPECTOS BACTERIOLÓGICOS E EPIDEMIOLÓGICOS

A difteria é causada pelo Corynebacterium diphtheriae, um bacilo Gram-positivo, com quatro biótipos: gravis, mitis, intermedius e belfanti. Apesar dos nomes, não há correlação entre os biótipos e a virulência dos bacilos. A liberação de uma exotoxina é a causa de sua patogenicidade e virulência. Para que isso ocorra, o bacilo deve ser lisogenado por um bacteriófago contendo o gene tox, dando origem a descendentes tox+. Cepas não-toxigênicas também podem causar a difteria, mas sem a virulência das toxigênicas.

A toxina diftérica é um polipeptídeo que pode ser clivado em dois peptídeos, os fragmentos A e B. Há receptores para o fragmento B na superfície das células, com uma maior concentração nos tecidos nervoso e miocárdio. A penetração do fragmento A (tóxico) nas células ocorre através do fragmento B. A liberação de toxina pela bactéria pode ser demonstrada por fagotipagem ou pelo teste de Elek.

O ser humano constitui-se no único reservatório, como doente ou portador, e sua transmissão se dá por meio de gotículas de secreção respiratória (espirro, tosse ou fala). Mais raramente, por fômites, alimentos e objetos contaminados. Sem tratamento, a transmissibilidade varia de duas a quatro semanas. O período de incubação é de um a seis dias, podendo atingir até dez dias. A difteria pode afetar todas as pessoas suscetíveis, de qualquer idade e sexo.

  1. 2.    PATOGENIA

Corynebacterium diphtheriae multiplica-se localmente no nariz, amídalas, faringe e laringe e, menos freqüentemente, na pele, conjuntivas, vulva e ânus. Caracteriza-se pelo pequeno poder invasivo, sem bacteriemia. A toxina é a responsável pelo quadro clínico mais exuberante e grave. No local da infecção, os leucócitos, depósitos de fibrina, tecido necrótico, bacilos diftéricos (tox+ ou tox-) e outras bactérias vão formar a pseudomembrana típica da difteria. Se a cepa for toxigênica, a toxina produzida no local da infecção cai na corrente sangüínea atingindo músculo cardíaco e tecido nervoso, principalmente.

O mecanismo de ação da toxina no interior da célula, através do fragmento A, é a inibição da síntese protéica. A partir daí, pode-se imaginar os sérios distúrbios que são causados no metabolismo celular e suas conseqüências, gerando quadros clínicos tão mais graves quanto maior a absorção da toxina. No tecido nervoso ocorre a desmielinização. No miocárdio, ocorre a degeneração gordurosa e miocardite, com distúrbios no sistema de condução.

3. MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS

O quadro inicia-se com sintomas inespecíficos, tais como febre baixa, anorexia e mal-estar. Em seguida, ocorre formação das pseudomembranas aderentes, que se caracterizam por coloração branco-acinzentada com um halo de palidez ao seu redor, e um aspecto consistente e homogêneo. O odor fétido é característico, relacionado à necrose. A doença típica manifesta-se por comprometimento acentuado do estado geral do paciente, que se mostra prostrado e pálido (toxemia); a queixa de dor de garganta pode ser discreta, independentemente da localização ou quantidade de placas existentes.

Na angina diftérica, a forma mais comum, as placas estendem-se pelas amídalas, recobrindo-as e, freqüentemente, invadem as estruturas vizinhas, podendo ser observadas nos pilares anteriores, úvula, palato mole e retrofaringe. Na rinite diftérica – normalmente concomitante à angina diftérica –, observa-se secreção nasal serossanguinolenta, geralmente unilateral, que provoca lesões das bordas do nariz e do lábio superior. A presença de rouquidão ou tosse seca e rouca sugere uma laringite diftérica. O agravamento progressivo do quadro pode culminar, após um a três dias, em dispnéia inspiratória, com tiragem intercostal, cornagem e ansiedade evidente, com sinais de hipoxemia. Na forma primária de laringite diftérica, a pseudomembrana só será visualizada por laringoscopia. As formas mistas são as mais freqüentes.

Difteria hipertóxica (difteria maligna) é como são denominados os casos graves, intensamente tóxicos, que desde o início apresentam importante comprometimento do estado geral do paciente. As placas, com aspecto necrótico, são invasivas. Há um aumento importante do volume dos gânglios da cadeia cervical e edema periganglionar, duro e bastante doloroso à palpação, caracterizando o chamado “pescoço taurino” da difteria.

A difteria cutânea é uma forma relativamente freqüente, particularmente em países tropicais em desenvolvimento, na qual se observa a presença de pseudomembranas na pele previamente lesada, por contaminação de ferimentos cutâneos ou dermatites. Geralmente causada por bacilos não-toxigênicos.

Difteria ocular manifesta-se através de intensa conjuntivite aguda, apresentando sintomas como dor, ardor e edema palpebral acentuado, com pseudomembranas na conjuntiva palpebral superior e/ou inferior. Não raramente, o processo pode propagar-se à córnea, às vezes com ulceração. A otite diftérica e a vulvovaginite são menos freqüentes.

O estabelecimento de complicações pode estar relacionado com localização e extensão da membrana e/ou quantidade de toxina absorvida e/ou estado imunitário do paciente. A presença de abafamento da primeira bulha cardíaca e/ou arritmia, durante ou após o curso da difteria, é geralmente indicativo de comprometimento miocárdico. Observam-se alterações de repolarização em 40% dos ECG, na maioria das vezes não acompanhadas de insuficiência cardíaca. As complicações neurológicas são alterações transitórias. Pode-se observar paresia ou paralisia bilateral e simétrica das extremidades, com hiporreflexia.

A forma mais comum e mais característica é a paralisia do véu do palato, ocasionando voz anasalada, engasgos, regurgitação de alimentos pelo nariz e desvio unilateral da úvula. Pode ocorrer broncoaspiração. A paralisia do diafragma, geralmente tardia, causando insuficiência respiratória, e a dos músculos oculares determinando diplopia, estrabismo, etc., também podem ser observadas, mais raramente.

Em geral, as complicações aparecem durante a segunda semana de evolução da doença; mais raramente, são observadas desde o início ou mais tardiamente, alguns meses depois.



4. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL

Difteria nasal: rinite estreptocócica, sifilítica, corpo estranho nasal. Difteria amigdaliana ou faríngea: amidalite estreptocócica, angina mucolítica, angina de Plaut Vincent, agranulocitose. Difteria laríngea: laringite estenosante, laringite estridulosa, epiglotite aguda, corpo estranho.



5. IMUNIDADE

A imunidade é mediada por anticorpos contra a toxina diftérica. Pode ser adquirida passivamente, por anticorpos maternos, que persistem até o segundo mês de vida do bebê. A imunização ativa pode dar-se através de infecções inaparentes que conferem imunidade em diferentes graus, dependendo da maior ou menor exposição dos indivíduos, ou por meio da vacinação com o toxóide diftérico, contido na vacina tríplice bacteriana contra a difteria, o tétano e a coqueluche (DTP). Apesar da boa eficácia da vacina, a imunidade conferida não é duradoura, indicando-se reforços a cada dez anos. A doença não confere imunidade.



6. TRATAMENTO

O tratamento específico para a difteria é o soro antidiftérico (SAD). De origem heteróloga, sua administração pode trazer complicações graves, tais como o choque anafilático e a doença do soro. Desse modo, recomenda-se o encaminhamento do suspeito a hospitais de referência, verificando se o paciente apresentou, anteriormente, quadros de hipersensibilidade, se já fez uso de imunoglobulinas de origem eqüina e se mantém contato freqüente com animais (principalmente eqüinos).

A literatura internacional recomenda a realização do teste subcutâneo para avaliar a sensibilidade, apesar do baixo valor preditivo, em ambiente hospitalar preparado para atender um choque anafilático. Mesmo a ocorrência de reações de hipersensibilidade não contra-indica a soroterapia, que deve ser realizada após a dessensibilização do paciente.

Nos casos graves, usualmente recomenda-se de 80.000 U a 120.000 U. Em casos leves, de 20.000 U a 40.000 U e nos moderados, de 40.000 U a 80.000 U. A via subcutânea não deverá ser utilizada, considerando a necessidade de uma concentração sérica elevada e rápida de anticorpos. Nos casos leves e moderados, pode-se administrar metade da dose por via intramuscular (IM) e o restante por via endovenosa (EV). Nos casos mais graves pode-se fazer dois terços EV e o restante IM.

O uso de antibiótico deve ser considerado como uma medida auxiliar da terapia específica, para interromper a produção da exotoxina e diminuir o período de transmissibilidade, através da destruição dos bacilos. Pode-se empregar tanto a penicilina (cristalina ou procaína), como a eritromicina, com a mesma eficácia, por 14 dias, em doses habitualmente recomendadas de acordo com o peso e a idade.

7. DIAGNÓSTICO LABORATORIAL

Em difteria, o diagnóstico laboratorial faz-se através da cultura positiva, em meios específicos, de material coletado de naso e orofaringe (N.G.) ou de lesão de pele. A rede de laboratórios de saúde pública é capacitada para a realização desses exames, cuja metodologia está padronizada em todo o Brasil, inclusive com o fornecimento dos meios de cultura.

Em qualquer país, a cultura demanda, em média, sete dias para ser concluída. Não se aguarda o resultado para iniciar o tratamento específico. Com a cepa faz-se a prova da toxigenicidade in vitro, a prova de Elek, que é processada por precipitação em ágar, com leitura em 48-72 horas, aguardando-se até dez dias para resultados negativos (cepa não-toxigênica).

8. NOTIFICAÇÃO, INVESTIGAÇÃO EPIDEMIOLÓGICA E MEDIDAS DE CONTROLE

Sendo uma doença que exige medidas de controle imediatas junto aos comunicantes, em casos suspeitos a notificação à vigilância epidemiológica (VE) deve ser feita com urgência, por telefone ou fax, por exemplo. A investigação procederá ao preenchimento da ficha epidemiológica de difteria, com notificação do caso no Sistema de Informação Nacional de Agravos de Notificação (Sinan); confirmação laboratorial ou clínica dos casos; identificação dos comunicantes íntimos; investigação da situação vacinal destes comunicantes e vacinação seletiva imediata; pesquisa de casos secundários através do exame clínico e vigilância sanitária (sete dias) de todos os comunicantes; e pesquisa do estado de portador nos comunicantes íntimos.

A erradicação do estado de portador é extremamente importante para o controle da disseminação da doença, pois ocorrem mais freqüentemente do que os casos de difteria e são os principais responsáveis pela transmissão na comunidade. Apesar de estar documentado que a eritromicina (doses para idade e peso, por sete dias) é mais eficaz na eliminação do estado de portador, por motivos operacionais o antibiótico de preferência é a penicilina benzatina, em dose única de 600.000 UI para os menores de 30 kg, e 1.200.000 UI para os maiores de 30 kg, via intramuscular.

No caso de comunicantes que trabalhem em profissões que envolvam a manipulação de alimentos, contato freqüente com grande número de crianças, nas faixas etárias de maior risco, ou, ainda, pessoas com diminuição da imunidade, recomenda-se que sejam afastados de seus locais de trabalho até 48 horas após a administração do antibiótico e culturas negativas.

Em relação aos comunicantes dos quais não se colheu material (NG) para cultura, indicar a antibioticoterapia aos não vacinados ou inadequadamente vacinados e aos que se desconhece o estado vacinal. Os comunicantes não vacinados deverão iniciar ou completar o seu esquema. Os já vacinados com última dose há mais de cinco anos devem receber uma dose de reforço. Como a doença não confere imunidade, o paciente precisa ser vacinado na convalescência.

O paciente deve ficar em isolamento respiratório (precauções por gotículas) por 14 dias e até que sejam obtidas duas culturas negativas, com intervalo de 24 horas entre elas, após a interrupção do antibiótico.

A notificação precoce e a investigação epidemiológica têm a finalidade de determinar a magnitude do problema, identificar a área geográfica de ocorrência e os grupos populacionais mais atingidos, além de avaliar a suscetibilidade da população da área envolvida e desencadear as medidas de controle pertinentes, para interromper a cadeia de transmissão, evitando surtos ou epidemias.

9. RECOMENDAÇÕES IMPORTANTES

A difteria não é mais somente uma “doença própria da infância” e ocorre mesmo em pessoas completa e recentemente vacinadas. Observe atentamente as lesões que fazem o diagnóstico diferencial, juntamente com o quadro geral do paciente. Se tiver dúvidas, peça uma segunda opinião.

É uma doença potencialmente grave e necessita de assistência médico-hospitalar imediata. Os casos suspeitos devem ser encaminhados para hospitais de referência que disponham de um estoque de SAD e contem com pessoas treinadas no manuseio desses pacientes.

É importante destacar que é a clínica e não o resultado do exame (de NG) que orienta a indicação do SAD. A dose a ser administrada varia de acordo com a gravidade do quadro, independe da idade e/ou o peso do paciente, e tem de ser suficiente para que toda a toxina circulante seja inativada. Mesmo na difteria com ausência de toxemia e/ou em pacientes vacinados, o SAD está indicado, uma vez que não dá para garantir que a imunidade do paciente será suficiente para neutralizar toda a toxina produzida se a cepa for toxigênica.

Na suspeita de um quadro de difteria, é imperiosa a realização do ECG, tanto na internação como no acompanhamento desse paciente. O bom prognóstico da difteria está diretamente relacionado ao estado imunitário do paciente, à precocidade da instituição do SAD, à ausência de “pescoço taurino” e de manifestações hemorrágicas, à não-invasibilidade das placas e de miocardite precoce ou de insuficiência renal.

A doença normalmente não confere imunidade permanente, devendo o convalescente ser vacinado após a alta hospitalar.

Mesmo para casos típicos, é preciso colher material para cultura e isolamento da cepa, que deve ser encaminhada para estudos de sua toxigenicidade e outros. Quando a pesquisa de portador não puder ser realizada em todos os comunicantes próximos, recomenda-se priorizar os que tenham contato com crianças (professores, por exemplo), com pessoas que apresentem diminuição da imunidade ou que trabalhem manipulando alimentos, e os com situação vacinal insatisfatória.

A presença de febre alta e/ou presença de abscesso periamigdaliano não deve afastar a suspeita de difteria porque o Streptococcus ß hemolítico pode estar associado aos quadros de difteria em 32% dos casos. A verificação de vários casos seguidamente graves de difteria, com óbitos, é um possível indicador de subnotificação dos casos não graves, diagnosticados como outras anginas.

Em presença de neurites ou miocardites inexplicáveis, deve-se perguntar por quadros de “amidalites” nas duas ou três semanas anteriores, pois alguns casos de difteria foram descobertos assim.


REFERÊNCIAS

1. Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Centro de Vigilância Epidemiológica – DIFTERIA - Normas e Instruções - Manual de Vigilância Epidemiológica (2001).

2. Dittmann S, Wharton M, Vitek C et al. Successful control of epidemic diphtheria in the states of the former Union of Soviet Socialist Republics: Lessons Learned. The Journal of Infectious Diseases 2000;181(Suppl 1):S1022.


3. Farizo KM, Strebel PM, Chen RT, Kimbler A, Cleary TJ & Cocchi SL. Fatal respiratory disease to Corynebacterium diphtheriae: case report and review of guidelines for management, investigation and control. Clinical Infectious Diseases 1993;16:59-68.


4. Galazka AM. The changing epidemiology of diphtheria in the vaccine era. Journal of Infectious Diseases 2000;181:S2-9.

5. Rappuoli R et al. Absence of protective immunity against diphtheria in a large proportion of young adults. Vaccine 1993;11(5):576-7.

6. Mark Reacher, Mary Ramsay, Joanne White et al. Nontoxigenic C. diphtheriae: An emerging pathogen in England and Wales? Emerging Infectious Diseases nov-dec 2000;6(6):640-5.

7. Ministério de Saúde. Funasa - Guia de Vigilância Epidemiológica. 5ª ed., 2002;(1);231.