1. INTRODUÇÃO
A difteria é uma doença infecciosa aguda, imunoprevenível e de notificação compulsória, caracterizada pela presença de uma pseudomembrana localizada principalmente em árvore respiratória, que pode produzir sintomatologia sistêmica pela ação de uma exotoxina. A mais remota descrição sobre sua ocorrência vem de Arataeus, o Capadócio (181-
Entre outros fatores, a introdução da vacinação em larga escala com o toxóide diftérico, após as décadas de 1940 e 1950, teve grande impacto na sua incidência, chegando-se até à eliminação virtual em alguns desses países. Entretanto, na década de
2. ASPECTOS BACTERIOLÓGICOS E EPIDEMIOLÓGICOS
A difteria é causada pelo Corynebacterium diphtheriae, um bacilo Gram-positivo, com quatro biótipos: gravis, mitis, intermedius e belfanti. Apesar dos nomes, não há correlação entre os biótipos e a virulência dos bacilos. A liberação de uma exotoxina é a causa de sua patogenicidade e virulência. Para que isso ocorra, o bacilo deve ser lisogenado por um bacteriófago contendo o gene tox, dando origem a descendentes tox+. Cepas não-toxigênicas também podem causar a difteria, mas sem a virulência das toxigênicas.
A toxina diftérica é um polipeptídeo que pode ser clivado em dois peptídeos, os fragmentos A e B. Há receptores para o fragmento B na superfície das células, com uma maior concentração nos tecidos nervoso e miocárdio. A penetração do fragmento A (tóxico) nas células ocorre através do fragmento B. A liberação de toxina pela bactéria pode ser demonstrada por fagotipagem ou pelo teste de Elek.
O ser humano constitui-se no único reservatório, como doente ou portador, e sua transmissão se dá por meio de gotículas de secreção respiratória (espirro, tosse ou fala). Mais raramente, por fômites, alimentos e objetos contaminados. Sem tratamento, a transmissibilidade varia de duas a quatro semanas. O período de incubação é de um a seis dias, podendo atingir até dez dias. A difteria pode afetar todas as pessoas suscetíveis, de qualquer idade e sexo.
- 2. PATOGENIA
Corynebacterium diphtheriae multiplica-se localmente no nariz, amídalas, faringe e laringe e, menos freqüentemente, na pele, conjuntivas, vulva e ânus. Caracteriza-se pelo pequeno poder invasivo, sem bacteriemia. A toxina é a responsável pelo quadro clínico mais exuberante e grave. No local da infecção, os leucócitos, depósitos de fibrina, tecido necrótico, bacilos diftéricos (tox+ ou tox-) e outras bactérias vão formar a pseudomembrana típica da difteria. Se a cepa for toxigênica, a toxina produzida no local da infecção cai na corrente sangüínea atingindo músculo cardíaco e tecido nervoso, principalmente.
O mecanismo de ação da toxina no interior da célula, através do fragmento A, é a inibição da síntese protéica. A partir daí, pode-se imaginar os sérios distúrbios que são causados no metabolismo celular e suas conseqüências, gerando quadros clínicos tão mais graves quanto maior a absorção da toxina. No tecido nervoso ocorre a desmielinização. No miocárdio, ocorre a degeneração gordurosa e miocardite, com distúrbios no sistema de condução.
3. MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS
O quadro inicia-se com sintomas inespecíficos, tais como febre baixa, anorexia e mal-estar. Em seguida, ocorre formação das pseudomembranas aderentes, que se caracterizam por coloração branco-acinzentada com um halo de palidez ao seu redor, e um aspecto consistente e homogêneo. O odor fétido é característico, relacionado à necrose. A doença típica manifesta-se por comprometimento acentuado do estado geral do paciente, que se mostra prostrado e pálido (toxemia); a queixa de dor de garganta pode ser discreta, independentemente da localização ou quantidade de placas existentes.
Na angina diftérica, a forma mais comum, as placas estendem-se pelas amídalas, recobrindo-as e, freqüentemente, invadem as estruturas vizinhas, podendo ser observadas nos pilares anteriores, úvula, palato mole e retrofaringe. Na rinite diftérica – normalmente concomitante à angina diftérica –, observa-se secreção nasal serossanguinolenta, geralmente unilateral, que provoca lesões das bordas do nariz e do lábio superior. A presença de rouquidão ou tosse seca e rouca sugere uma laringite diftérica. O agravamento progressivo do quadro pode culminar, após um a três dias, em dispnéia inspiratória, com tiragem intercostal, cornagem e ansiedade evidente, com sinais de hipoxemia. Na forma primária de laringite diftérica, a pseudomembrana só será visualizada por laringoscopia. As formas mistas são as mais freqüentes.
Difteria hipertóxica (difteria maligna) é como são denominados os casos graves, intensamente tóxicos, que desde o início apresentam importante comprometimento do estado geral do paciente. As placas, com aspecto necrótico, são invasivas. Há um aumento importante do volume dos gânglios da cadeia cervical e edema periganglionar, duro e bastante doloroso à palpação, caracterizando o chamado “pescoço taurino” da difteria.
A difteria cutânea é uma forma relativamente freqüente, particularmente em países tropicais em desenvolvimento, na qual se observa a presença de pseudomembranas na pele previamente lesada, por contaminação de ferimentos cutâneos ou dermatites. Geralmente causada por bacilos não-toxigênicos.
Difteria ocular manifesta-se através de intensa conjuntivite aguda, apresentando sintomas como dor, ardor e edema palpebral acentuado, com pseudomembranas na conjuntiva palpebral superior e/ou inferior. Não raramente, o processo pode propagar-se à córnea, às vezes com ulceração. A otite diftérica e a vulvovaginite são menos freqüentes.
O estabelecimento de complicações pode estar relacionado com localização e extensão da membrana e/ou quantidade de toxina absorvida e/ou estado imunitário do paciente. A presença de abafamento da primeira bulha cardíaca e/ou arritmia, durante ou após o curso da difteria, é geralmente indicativo de comprometimento miocárdico. Observam-se alterações de repolarização em 40% dos ECG, na maioria das vezes não acompanhadas de insuficiência cardíaca. As complicações neurológicas são alterações transitórias. Pode-se observar paresia ou paralisia bilateral e simétrica das extremidades, com hiporreflexia.
A forma mais comum e mais característica é a paralisia do véu do palato, ocasionando voz anasalada, engasgos, regurgitação de alimentos pelo nariz e desvio unilateral da úvula. Pode ocorrer broncoaspiração. A paralisia do diafragma, geralmente tardia, causando insuficiência respiratória, e a dos músculos oculares determinando diplopia, estrabismo, etc., também podem ser observadas, mais raramente.
Em geral, as complicações aparecem durante a segunda semana de evolução da doença; mais raramente, são observadas desde o início ou mais tardiamente, alguns meses depois.
4. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL
Difteria nasal: rinite estreptocócica, sifilítica, corpo estranho nasal. Difteria amigdaliana ou faríngea: amidalite estreptocócica, angina mucolítica, angina de Plaut Vincent, agranulocitose. Difteria laríngea: laringite estenosante, laringite estridulosa, epiglotite aguda, corpo estranho.
5. IMUNIDADE
A imunidade é mediada por anticorpos contra a toxina diftérica. Pode ser adquirida passivamente, por anticorpos maternos, que persistem até o segundo mês de vida do bebê. A imunização ativa pode dar-se através de infecções inaparentes que conferem imunidade em diferentes graus, dependendo da maior ou menor exposição dos indivíduos, ou por meio da vacinação com o toxóide diftérico, contido na vacina tríplice bacteriana contra a difteria, o tétano e a coqueluche (DTP). Apesar da boa eficácia da vacina, a imunidade conferida não é duradoura, indicando-se reforços a cada dez anos. A doença não confere imunidade.
6. TRATAMENTO
O tratamento específico para a difteria é o soro antidiftérico (SAD). De origem heteróloga, sua administração pode trazer complicações graves, tais como o choque anafilático e a doença do soro. Desse modo, recomenda-se o encaminhamento do suspeito a hospitais de referência, verificando se o paciente apresentou, anteriormente, quadros de hipersensibilidade, se já fez uso de imunoglobulinas de origem eqüina e se mantém contato freqüente com animais (principalmente eqüinos).
A literatura internacional recomenda a realização do teste subcutâneo para avaliar a sensibilidade, apesar do baixo valor preditivo, em ambiente hospitalar preparado para atender um choque anafilático. Mesmo a ocorrência de reações de hipersensibilidade não contra-indica a soroterapia, que deve ser realizada após a dessensibilização do paciente.
Nos casos graves, usualmente recomenda-se de 80.000 U a 120.000 U. Em casos leves, de 20.000 U a 40.000 U e nos moderados, de 40.000 U a 80.000 U. A via subcutânea não deverá ser utilizada, considerando a necessidade de uma concentração sérica elevada e rápida de anticorpos. Nos casos leves e moderados, pode-se administrar metade da dose por via intramuscular (IM) e o restante por via endovenosa (EV). Nos casos mais graves pode-se fazer dois terços EV e o restante IM.
O uso de antibiótico deve ser considerado como uma medida auxiliar da terapia específica, para interromper a produção da exotoxina e diminuir o período de transmissibilidade, através da destruição dos bacilos. Pode-se empregar tanto a penicilina (cristalina ou procaína), como a eritromicina, com a mesma eficácia, por 14 dias, em doses habitualmente recomendadas de acordo com o peso e a idade.
7. DIAGNÓSTICO LABORATORIAL
Em difteria, o diagnóstico laboratorial faz-se através da cultura positiva, em meios específicos, de material coletado de naso e orofaringe (N.G.) ou de lesão de pele. A rede de laboratórios de saúde pública é capacitada para a realização desses exames, cuja metodologia está padronizada em todo o Brasil, inclusive com o fornecimento dos meios de cultura.
Em qualquer país, a cultura demanda, em média, sete dias para ser concluída. Não se aguarda o resultado para iniciar o tratamento específico. Com a cepa faz-se a prova da toxigenicidade in vitro, a prova de Elek, que é processada por precipitação em ágar, com leitura em 48-72 horas, aguardando-se até dez dias para resultados negativos (cepa não-toxigênica).
8. NOTIFICAÇÃO, INVESTIGAÇÃO EPIDEMIOLÓGICA E MEDIDAS DE CONTROLE
Sendo uma doença que exige medidas de controle imediatas junto aos comunicantes, em casos suspeitos a notificação à vigilância epidemiológica (VE) deve ser feita com urgência, por telefone ou fax, por exemplo. A investigação procederá ao preenchimento da ficha epidemiológica de difteria, com notificação do caso no Sistema de Informação Nacional de Agravos de Notificação (Sinan); confirmação laboratorial ou clínica dos casos; identificação dos comunicantes íntimos; investigação da situação vacinal destes comunicantes e vacinação seletiva imediata; pesquisa de casos secundários através do exame clínico e vigilância sanitária (sete dias) de todos os comunicantes; e pesquisa do estado de portador nos comunicantes íntimos.
A erradicação do estado de portador é extremamente importante para o controle da disseminação da doença, pois ocorrem mais freqüentemente do que os casos de difteria e são os principais responsáveis pela transmissão na comunidade. Apesar de estar documentado que a eritromicina (doses para idade e peso, por sete dias) é mais eficaz na eliminação do estado de portador, por motivos operacionais o antibiótico de preferência é a penicilina benzatina, em dose única de 600.000 UI para os menores de
No caso de comunicantes que trabalhem em profissões que envolvam a manipulação de alimentos, contato freqüente com grande número de crianças, nas faixas etárias de maior risco, ou, ainda, pessoas com diminuição da imunidade, recomenda-se que sejam afastados de seus locais de trabalho até 48 horas após a administração do antibiótico e culturas negativas.
Em relação aos comunicantes dos quais não se colheu material (NG) para cultura, indicar a antibioticoterapia aos não vacinados ou inadequadamente vacinados e aos que se desconhece o estado vacinal. Os comunicantes não vacinados deverão iniciar ou completar o seu esquema. Os já vacinados com última dose há mais de cinco anos devem receber uma dose de reforço. Como a doença não confere imunidade, o paciente precisa ser vacinado na convalescência.
O paciente deve ficar em isolamento respiratório (precauções por gotículas) por 14 dias e até que sejam obtidas duas culturas negativas, com intervalo de 24 horas entre elas, após a interrupção do antibiótico.
A notificação precoce e a investigação epidemiológica têm a finalidade de determinar a magnitude do problema, identificar a área geográfica de ocorrência e os grupos populacionais mais atingidos, além de avaliar a suscetibilidade da população da área envolvida e desencadear as medidas de controle pertinentes, para interromper a cadeia de transmissão, evitando surtos ou epidemias.
9. RECOMENDAÇÕES IMPORTANTES
A difteria não é mais somente uma “doença própria da infância” e ocorre mesmo em pessoas completa e recentemente vacinadas. Observe atentamente as lesões que fazem o diagnóstico diferencial, juntamente com o quadro geral do paciente. Se tiver dúvidas, peça uma segunda opinião.
É uma doença potencialmente grave e necessita de assistência médico-hospitalar imediata. Os casos suspeitos devem ser encaminhados para hospitais de referência que disponham de um estoque de SAD e contem com pessoas treinadas no manuseio desses pacientes.
É importante destacar que é a clínica e não o resultado do exame (de NG) que orienta a indicação do SAD. A dose a ser administrada varia de acordo com a gravidade do quadro, independe da idade e/ou o peso do paciente, e tem de ser suficiente para que toda a toxina circulante seja inativada. Mesmo na difteria com ausência de toxemia e/ou em pacientes vacinados, o SAD está indicado, uma vez que não dá para garantir que a imunidade do paciente será suficiente para neutralizar toda a toxina produzida se a cepa for toxigênica.
Na suspeita de um quadro de difteria, é imperiosa a realização do ECG, tanto na internação como no acompanhamento desse paciente. O bom prognóstico da difteria está diretamente relacionado ao estado imunitário do paciente, à precocidade da instituição do SAD, à ausência de “pescoço taurino” e de manifestações hemorrágicas, à não-invasibilidade das placas e de miocardite precoce ou de insuficiência renal.
A doença normalmente não confere imunidade permanente, devendo o convalescente ser vacinado após a alta hospitalar.
Mesmo para casos típicos, é preciso colher material para cultura e isolamento da cepa, que deve ser encaminhada para estudos de sua toxigenicidade e outros. Quando a pesquisa de portador não puder ser realizada em todos os comunicantes próximos, recomenda-se priorizar os que tenham contato com crianças (professores, por exemplo), com pessoas que apresentem diminuição da imunidade ou que trabalhem manipulando alimentos, e os com situação vacinal insatisfatória.
A presença de febre alta e/ou presença de abscesso periamigdaliano não deve afastar a suspeita de difteria porque o Streptococcus ß hemolítico pode estar associado aos quadros de difteria em 32% dos casos. A verificação de vários casos seguidamente graves de difteria, com óbitos, é um possível indicador de subnotificação dos casos não graves, diagnosticados como outras anginas.
Em presença de neurites ou miocardites inexplicáveis, deve-se perguntar por quadros de “amidalites” nas duas ou três semanas anteriores, pois alguns casos de difteria foram descobertos assim.
REFERÊNCIAS
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2. Dittmann S, Wharton M, Vitek C et al. Successful control of epidemic diphtheria in the states of the former Union of Soviet Socialist Republics: Lessons Learned. The Journal of Infectious Diseases 2000;181(Suppl 1):S1022.
3. Farizo KM, Strebel PM, Chen RT, Kimbler A, Cleary TJ & Cocchi SL. Fatal respiratory disease to Corynebacterium diphtheriae: case report and review of guidelines for management, investigation and control. Clinical Infectious Diseases 1993;16:59-68.
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5. Rappuoli R et al. Absence of protective immunity against diphtheria in a large proportion of young adults. Vaccine 1993;11(5):576-7.
6. Mark Reacher, Mary Ramsay, Joanne White et al. Nontoxigenic C. diphtheriae: An emerging pathogen in England and Wales? Emerging Infectious Diseases nov-dec 2000;6(6):640-5.
7. Ministério de Saúde. Funasa - Guia de Vigilância Epidemiológica. 5ª ed., 2002;(1);231.